Datada de 2015 e extraída do álbum `O Ermo´, a música `Flagelados do vento santo II´ foi minuciosamente estudada com a finalidade de elaboração de um trabalho de final de curso, para obtenção do grau de licenciatura, no Instituto Superior Pedagógico do Bengo.
Colocada à lupa e literalmente desconstruída ao pormenor, Graça Moisés, Manuel Muginga e Zola Daniel, estabeleceram no trabalho intitulado “Um estudo sobre a quitandeira, de Agosto Neto a Flagelados do vento santo II, de Flagelo Urbano”, um paralelo entre a poética cânone, expressa no livro Sagrada Esperança e a poética da interface do texto marginalizado ou revolucionário presente n´O Ermo.
Embora pouco explorada de forma acadêmica em Angola, esta forma de estudo científico com músicas de intervenção político-social vem se tornando cada vez mais popular em países que partilham o mesmo código linguístico, onde já se pode afirmar que o Rap made in Angola “rompeu” o asfalto e firmou lugar nas universidades.
Em exclusivo à Carga Magazine, o trio de estudantes descortinou o que esteve na base desta escolha à “dedo”, e foram mais além, versando em “Um estudo sobre a quitandeira, de Agosto Neto, a Flagelados do vento santo II, de Flagelo Urbano”, que o estudo no domínio da poética da interface, sobre a incidência dos fenómenos de venda informal «quitanda» e «zunga» são tidos como factores de exclusão sócio-económica, sendo que, a produção literária netiana não pode ser dissociada do seu contexto sociopolítico e ideológico em que foi feita. Ao passo que Flagelo Urbano não fica, de igual modo, alheio às manifestações de ordem acima mencionada, isto é, o seu vínculo com a realidade social da qual faz parte tem sido motivação que incide na sua concepção enquanto produto social, em virtude da verticalidade da consciência revolucionária.
De onde surgiu o interesse em fazer o estudo da música de Flagelo Urbano para a elaboração da monografia?
Já ouvíamos Flagelo Urbano em casa e gostamos de música sobre intervenção social, sobretudo o RAP. Na tentativa de procurar uma abordagem não muito explorada na escola, entrámos num projecto na escola no departamento de Letras, na Escola Pedagógica do Bengo, e o professor propôs-nos fazer um estudo e falar sobre interface (Literatura e outras Artes) e nós optámos pela literatura e música. O interesse surgiu ao olharmos para o contexto escolar, já que muitos textos são marginalizados… normalmente usa-se o texto da literatura pura, e as outras artes são esquecidas, quando, na verdade, pode se estudar literatura a partir de outras modalidades artísticas como a música.
Em que aspectos há interface?
Tivemos o interesse de tentar relacionar um diálogo entre um texto canónico de Agostinho Neto e fazer um diálogo com um texto que é marginalizado, que é o Rap, sobretudo o Rap Revolucionário, vimos que os fenómenos quanto a Quitandeira de Agostinho Neto apresentava uma abordagem sobre a exclusão das mulheres no mercado formal, factores que levam essas mulheres a irem para o mercado informal, como sustento das suas vidas, e vimos que também o Flagelo Urbano nesses factores socioeconómicos nos mercados formal, também é um dos motivos que tem levado as mulheres para o mercado informal e relacionamos. Isto nos fez entender que os problemas de exclusão socioeconómicas no período colonial que Agostinho Neto procurou ficcionar nos dias actuais ainda vê se, então decidimos fazer um estudo comparativo no âmbito da literatura de Interface ou na Poética da Interface.
E este paralelo vocês encontraram justamente porque o texto da quitandeira tem uma semelhança com a forma que a música do Flagelo começa?
Sim, foi neste contexto. Nós entendemos que Agostinho Neto procura mostrar que a quitandeira está ali de baixo da sombra da mulemba numa tarde de muito sol a comercializar o seu produto, porque ela não encontra um espaço no mercado formal no contexto colonial, o colonizador não criava políticas de inclusão dessas senhoras ao todo, e Flagelo urbano mostra nos que dias actuais há também esta exclusão, a promessa de construção de uma nação igualitária de inclusão para todos falhou, e foi aí que surgiu este fenómeno de Zunga e é reflexo da exclusão socioeconómica.
Os textos das músicas revolucionárias acabam por ser um pouco marginalizados. Quando informaram para a Universidade que pretendiam fazer um estudo sobre este tipo de texto foi aceite rapidamente a vossa proposta?
Algumas pessoas tiveram sépticas quanto a isto, a Universidade não contestou, penso por não ser uma abordagem muito politizada, é uma abordagem social a Universidade aceitou normalmente.
O grupo era composto por três elementos, foi consensual a escolha do tema entre os três?
A escolha foi consensual, onde recolhemos vários textos para escolhermos qual seria o diálogo. Também ouvimos varias músicas e depois, chegámos a uma conclusão onde o melhor séria de Flagelo e Agostinho Neto. Também haviam mais evidências e achámos o texto mais interessante.
E, durante o processo da elaboração do trabalho, tiveram contacto com o Flagelo Urbano ou foi somente um trabalho de pesquisa?
Foi basicamente um trabalho de pesquisa, no princípio, queríamos contactar o Flagelo para fornecer alguns dados pessoais, linhas ideológicas, e artísticos sobretudo, mas depois chegámos à conclusão, que poderia corromper a nossa forma de abordagem. Só depois de terminarmos o trabalho é que Flagelo ficou a saber por meio das redes sociais.
Julga que foi o processo mais viável?
A ideia inicial era mesmo chamá-lo, não se concretizou por uma questão de tempo. E por recearmos que essa “pressa” pudesse interferir na nossa maneira de análise.
De que formas?
Enquanto leitores, dentro da estética da recepção, temos certa liberdade e independência, quando o leitor procura fazer uma abordagem historicista ou biográfica, até certo ponto pode afectar na maneira como a pessoa gostaria de ler a obra. E neste caso atrapalharia, porque já estava um anteprojeto criado com os objectivos, já havia um problema científico, enfim…
17 valores foi a vossa nota final, faz juz ao esforço para a elaboração do projecto?
Sim, almejávamos entre 17/18 valores. Estava dentro das nossas expectativas.
O trabalho é datado de 2019, foi elaborado nesta mesma fase?
Começamos mais cedo, a criação do trio de pesquisa começou em 2017, por incompatibilidades com a agenda do professor, foi se arrastando até esta data. Mas o trabalho intensivo foi em 2018, com a escolha dos textos a ser analisados não trabalhamos num ritmo acentuado. Em 2019 decidimos elaborar e defender o trabalho.
Este trabalho passará a ser visto como incentivo ao estudo de letras locais. Serão vistos como pioneiros deste “movimento” …
Não é o primeiro trabalho, e se existem, este é um dos poucos, sendo uma experiência pouco explorada nas universidades angolanas. A poética da interface, que trabalha com um texto marginal, Rap e revolucionário, relacionado com um poeta cânone da nossa literatura, realmente é uma experiência pouco explorada.
Sabe-se que actualmente há estudantes do Instituto Superior Pedagógico do Bengo, interessados em dar continuidade a esta “matriz”…
Primeiramente ficámos orgulhosos, muitos jovens que frequentam a universidade, já entram em contacto connosco, afim de receber subsídios para futuros trabalhos. Estamos felizes com isto, a continuidade de trazer como objecto de estudo a literatura pura com uma canção.
Além das obras poética e musical já citadas, quais as outras ferramentas usadas para este estudo?
Procuramos a partir das teorias do sociólogo Paulo de Carvalho, e da estudiosa Tamba com o seu trabalho da dissertação de mestrado e tese de doutoramento, onde aborda a exclusão socio económica e também aborda a questão das zungeiras, foi este o marco teórico e no âmbito da sociologia da literatura convocamos António Cândido, investigador de Literatura brasileira. Todos estes nomes citados nos serviram de ferramentas para ajudar-nos a fazer o estudo nesta prespectiva, para mostrarmos que existe uma forte relação triádica entre escritor, obra e meio social, ou seja muitas obras surgem em função da influencia que o escritor recebe da cidade.