O auditório do Centro de Conferência de Belas testemunhou, nos dias 12 e 13 de Março, mais um marco para o teatro nacional: a apresentação do musical ‘`Belas e Perigosas´. Numa produção da Mentes Fabulosas, o espectáculo idealizado por Neide Van-dúnem, que foi escrito e encenado pelo dramaturgo Tony Frampênio, fez jus à génese dos musicais e foi a prova de que a arte de resistência está a caminhar a passos largos rumo ao “nível” de Broadway.
Para quem soube ler nas entrelinhas, as belas em palco, nada tinham de perigosas, tampouco promiscuas. Entre sátiras, danças e canções sutilmente críticas, a peça fez apologia à reflexão sobre o estigma social que se esconde no véu da impunidade, a violência doméstica.
A performance inenarrável, conta o drama de seis reclusas, cuja tentativa de livrarem-se da violência doméstica forçou-as a cometer homicídio. Protagonizada por Stela de Carvalho, Jéssica Pitbull, Lesliana Pereira, Juddy da Conceição, Ailsa Renata, Rosa de Sousa, Elizângela Gomes, o elenco completa-se com as actuações de Sílvio Nascimento, Galiano da Rocha, Leomarte Freire, Jaime Joaquim, Joel Beloniel, Gilmário Vemba, Karina Barbosa, Daniela fortunato, Dalton Borralho e ainda Big Nelo, como convidado especial.
Falando à Carga Magazine, Frampênio descortinou todo o processo criativo do musical, e sobre a má conotação pública, afirma: Belas e Perigosas tem sido associado à sexualização e objectificação da mulher “porque há uma dificuldade hermenêutica do público angolano em interpretar arte”.

A peça Belas e Perigosas foi apresentada como uma adaptação de “Chicago”. Como podemos associar uma à outra tendo sinopses tão distintas?
A adaptação é a transposição de uma obra (seja teatro, filme, ou um romance, por exemplo) para um formato, espaço e contexto diferente. Logo, mudam-se alguns detalhes da obra original, dando-lhe outra cor, cheiro e textura. É assim que decidimos mudar a sinopse da história do “Chicago” e passou a ser a sinopse da história de “Belas e Perigosas”, que aborda a vida de um casal, Makiesse e Beto, e de seis presidiárias que contam como e porquê mataram os seus maridos, tendo como fio condutor a violência doméstica. O público amante de teatro ao assistir o espectáculo, poderá associar a adaptação “Belas e Perigosas” da Obra original “Chicago” através da trama central, que é a violência contra a mulher.
Sabe‐se que a peça é da sua autoria, mas quem foram os intervenientes indispensáveis para que a mesma saísse do papel?
A peça foi escrita e encenada por mim, mas foi ideia da Neide Van-dúnem que adaptássemos “Chicago”. Portanto, a principal interveniente para a realização do desiderato foi a própria Neide que foi a busca de recursos humanos, técnicos e financeiros. Com ela, uma equipa de 115 jovens (maior parte mulheres, entre produtores, técnicos, protocolo, motoristas, dançarinos e dançarinas, cantores e o elenco de actores e actrizes).
A quem coube a escolha do elenco?
Essa responsabilidade foi minha e da Neide. Ela com uma visão mais comercial, pensou em actores e actrizes que nos garantissem público na sala. Eu olhei mais para a capacidade de performance dos artistas. Criamos o equilíbrio e até fizemos um casting para encontrar os actores cujas características não vimos naqueles que já definimos a priori.
Como se deu a selecção dos elencos e quais são os requisitos para participar do projecto. Há preferências por tipos de voz, tipos físicos, personalidades etc.? Há um predomínio de actores que cantam e dançam, de músicos que actuam e dançam ou de bailarinos que actuam e cantam?
Como respondido na questão anterior, foi por uma estratégia económica e artística, daí termos equilibrado: dançarinos, cantores, apresentadores, influenciadores sociais e actores. O tipo físico, beleza ou qualidade vocal são qualidades que o elenco escolhido já traz de praxe e não foi uma coisa requerida por nós. O que nos interessou nos artistas escolhidos foi o profissionalismo e o comprometimento com a causa e o desafio de fazer algo diferente.
No total, quantos profissionais estiveram envolvidos?
115 (homens e mulheres).
Há um ano, em entrevista à Carga Magazine, considerou os Musicais como uma disciplina de difícil execução. Qual a percepção que tem hoje?
Encenar um musical é difícil cá na África, no Ocidente e na América ou no Oriente. É um género que exige um grande grupo de profissionais e um grande senso de responsabilidade, mas acima de tudo uma grande capacidade técnica, artística e logística. Na Broadway os musicais podem custar até um bilião de dólares e render 20 vezes mais. É uma indústria, gera empregos e rende muito dinheiro. Portanto, não é coisa de “criança” para brincar, nem é reunião de amigos para cantar e dançar num bar. É arte, é negócio, é cultura, é educação. Com essas coisas não se brinca.
Se teatro, por si só, é considerado em Angola como a arte da resistência, acha que o teatro musical vingará a curto prazo?
É provável que sim. Primeiro porque os musicais em toda parte do mundo são géneros artísticos que atraem a atenção dos turistas e entusiastas que procuram a libertação das suas “catarses” do dia-a-dia, da vida profissional e das quesílias políticas. Também poderá vingar porque a música e a dança, traços da nossa cultura, da tradição africana e da humanidade, em geral, assim como o drama, juntos, num só palco, têm tanta força capaz de impactar, não só na ludicidade popular, mas também, como já dissemos antes, na economia dos envolvidos do jogo artístico.
Decidimos fazer o “Belas e Perigosas” porque já havíamos feito o “Galáxia”, que também foi um sucesso e os amantes do teatro continuam a solicitar e a incentivar a encenar este género. Deve ser por gostarem mesmo de música e dança que mais de 6 mil pessoas foram ao CCB, dia 13 de Março assistir o teatro musical “Belas e Perigosas”.
Até então, sabe-se já de dois musicais da sua autoria, qual deles foi o mais trabalhoso?
São musicais com características diferentes: o Galáxia é o tipo de musical total, enquanto que o “Belas e Perigosas” é um musical dramático, ou seja, o Galáxia é canto do início ao fim e o Belas e Perigosas é intercalado com diálogos e cenas dramáticas para culminar com dança e música. Na nossa perspectiva, é porque estamos a começar neste género, sem formação técnica especializada de canto e drama, muitas vezes temos que recorrer a cantores que não interpretam o drama e a actores que não cantam as melodias, também a dançarinos que não entendem o canto, nem o drama, isso torna o processo complexo e moroso. Com o “Galáxia”, por se tratar de um musical total: dança, drama e música do princípio ao fim, tivemos muito mais trabalho porque eram os próprios actores a cantarem, dançarem e dramatizarem.
Com o “Belas e Perigosas” foi diferente. Foi um trabalho mais fragmentado que se uniu ao todo.
Quais são os desafios de dirigir cenicamente um musical?
Entender de tudo que é arte (artes cénicas, artes visuais e, até arquitetura, etc), mas acima disso, conhecer música ou ter sensibilidade musical. O director de um musical precisa ser um expert em dramaturgia, no sentido da encenação. Tendo isso, o desafio será cruzar harmoniosamente, todas as ou algumas formas artísticas, contando uma história que encanta uma plateia.
Quais são os desafios de se fazer um musical com música ao vivo?
Por norma, todo musical deve ser acompanhado com música ao vivo, aliás, as artes cénicas só são o que são, com a sua peculiaridade, porque acontecem ao vivo. Se assim no for, não tem graça, não tem arte. Isso exige muito tempo de ensaio, este é o desafio: ensaio o tempo necessário até que se percebe que a obra está pronta para ser apresentada ao público.
Em Belas e Perigosas, o tema central é a violência doméstica, mas os internautas têm associado a peça à “objectificação e sexualização da mulher”. De que formas é que se pode contornar esta má interpretação?
Primeiro é preciso compreender que há uma dificuldade hermenêutica do público angolano em interpretar arte. Daí a confusão entre simbolização e realidade factual. As mulheres representadas na obra simbolizam a imagem que a sociedade tem da mulher. É por isso que, em grande parte, quem assiste o espectáculo sente “ódio” ao ver em cena mulheres semi-nuas. Mas, na verdade, é assim que muitos homens as querem, desde que não seja a da sua casa, a da sua cama. É a própria sociedade que construiu esta imagem da mulher.
Ao trazermos aqui em Belas e Perigosas, estamos a denunciar um facto social que precisa ser visto de frente sem que se vire o rosto para outro lado. Só assim perceberemos como as nossas filhas estão vestidas, como as nossas irmãs são tratadas, como a mulher é e está, em Angola. Agora, nós não vamos aqui procurar formas para contornar nenhuma situação de má interpretação! Não é essa a função da arte. Quem quiser aprender a interpretar fenómenos tem que estudar. Por isso, existem as escolas. O que nós fizemos foi uma provocação, arte é isso, cabe ao público decidir o que quer que aquilo seja. Eu não vejo aí mulheres nuas nem objectificação ou sexualização da mulher, vejo sim a emancipação delas. Veja que também tivemos homens sem camisa na obra, alguém “reclamou” sobre isso? Não. Pois é. Porque razão a mulher deve sempre a aprovação moral da sociedade machista? Essa questão é para reflexão.